O Mural do Mestre Malangatana Valente Ngwenya na Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique
POSTED ON: August 16, 2021 IN João Schwalbach, On Artists, Word View– João Schwalbach
João Schwalbach (n.1942, em Tete) é um médico moçambicano, especialista em saúde pública, que manteve uma relação de grande amizade com Malangatana Valente Ngwenya. Quando foi Director da Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane desafiou o artista a pintar um mural nas instalações da Faculdade. A história deste mural, resultado do trabalho e envolvimento dos dois amigos, é aqui contada por João Schwalbach.
Estamos no ano 2000, poucos meses passados de deixar para trás o século XX. Eu, Director da Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane e o Mestre Malangatana, como sempre o tratei, profundo amigo de tempos mais antigos, encontrávamo-nos com alguma frequência. Ora na sua terra natal, Matalana, ora na oficina do nosso comum amigo José Forjaz, eminente arquitecto moçambicano e do mundo, ora na Faculdade de Medicina onde me visitava diversas vezes, ora…em diversos países do mundo (Nígéria, Portugal, França).
Conheci o Mestre Malangatana nos inícios da década de 1960, fruto de contactos efémeros, rápidos e superficiais. Mais tarde, activista e dirigente da Associação Académica de Moçambique tive o privilégio de poder com ele mais conviver e partilhar mesmo algumas cumplicidades.
Mas, permitam-me contar estes episódios pela pena do jornalista Alexandre Chaúque:
Recordam-nos os estudantes de medicina e médicos que, naquele local recôndito – desafiando os turbulentos momentos em que fervilhavam os ideais de libertação do jugo colonial – foram trabalhar em prol da saúde das populações. É uma rememoração dos tempos em que o administrador de Marracuene mandou enterrar ― em 1973 ― todos os medicamentos que existiam no “xipiritana” (hospital) de lá. Deixando os matalanenses vulneráveis à doença. [1]
…
Havia em Matalana um conjunto musical denominado Chikuwakuwa, que vinha regularmente à antiga Lourenço Marques, tocar no “Self” da Universidade, onde nasceram os “lobbies”. [2]
Ali foram contactados jovens estudantes para darem o seu apoio na saúde. Havia também a secção económica e política. Os estudantes foram imediatamente receptivos. Foram a Matalana onde inclusivamente interessaram-se pela agricultura. Fundaram um centro de saúde num dia em que havia uma grande aglomeração de gente, que participava num acto que marcaria uma etapa que atinge agora ― passadas quase três décadas ― o ponto mais elevado.
Nesse grupo de estudantes e médicos, pontificavam nomes que hoje são figuras públicas: Dr. Albertino Damasceno, Ricardo Barradas, Dr. João Schwalbach, e a nível local estava o enfermeiro Belmiro Magule e Otília Nguenha.
Segundo nos disse Malangatana, os estudantes e médicos que iam de Maputo, faziam trabalhos aos fins de semana e noutros dias que estivessem de folga. “É bastante emocionante recordar os tempos em que esses grandes homens trabalhavam no “xipiritana” de lá”.
…
O mais historicamente importante, para rematar, é que, depois de o administrador ter mandado enterrar os medicamentos, continuaram as quatro camas, a geleira e outras pequenas coisas no “xiripitana” de lá.
Viva os médicos da década de sessenta, que fizeram de Matalana um local escolhido.
A partir deste sempre crescente convívio ― Mestre Malangatana acreditava ― e fez-me também acreditar que através de um empenhamento sério com a cultura se conseguiria atingir um desenvolvimento mais global e completo de uma comunidade. E este era o sonho sonhado para Matalana.
Se me refiro a estes episódios é para narrar que o mural do Mestre Malangatana agora existente na Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo tem a ver, também, com Matalana.
Numa das suas múltiplas visitas à Faculdade de Medicina ter-lhe-ia dito:
― Mestre, como sabes e eu venho repetindo “Quem só sabe Medicina, nem Medicina Sabe”.[3] Gostaria muito que, como em Matalana, deixasses aqui a tua arte, bem à entrada da Faculdade, com um expressivo e grande mural que traduza a força que emprestas à cultura moçambicana, à cultura africana, à cultura universal. Creio que passarão a ser outros os médicos que aqui se formarão.
Estático, com a sua expressão sempre serena, mas com o seu costumado olhar penetrante, pareceu-me um pouco incrédulo com o que estava sendo proposto. Acrescentei de imediato:
― Como também sabes, Mestre, a Faculdade não tem qualquer hipótese em pagar, muito menos o valor da tua obra. Seria a tua contribuição para uma melhor formação do médico moçambicano e, para mim, uma oportunidade histórica de valorizar eternamente esta Escola. Vamos ver o local e dizes-me o que precisas.
De pronto nos levantámos e, já no local por mim idealizado para o mural, o Mestre respondeu-me:
― Fechado. Compras as tintas e arranja os andaimes.
Assim! Assim tão simples e tão rápido. E o Mestre Malangatana logo enceta a preparação dos trabalhos.
Compradas as tintas e montados que foram os andaimes, a nossa preocupação era agora a segurança física do Mestre, conhecidos que eram o seu volume corporal e o seu peso. Espantosamente Malangatana entrega-se com vigor e persistência ao trabalho, ágil como um bailarino (que também era), firme e seguro consigo próprio, naquela sã obsessão de levar até ao fim a sua decisão.
Mestre Malangatana chegava só, ao fim do dia, à Faculdade de Medicina. Com uma ligeireza impressionante, não obstante a sua corpulência, trepava de imediato os andaimes e logo iniciava o seu trabalho que se prolongava noite adentro. A Faculdade de Medicina disponibilizou, sempre, alguns trabalhadores seus que constantemente o acompanhavam e apoiavam.
A primeira fase foi a preparação da parede em si, pois nos informou que um mural requereria um tratamento peculiar e intransigente para seu suporte. Havia que se fazer primeiro uma boa base, dizia.
Toda a parede foi, primeiramente, barrada de uma tinta castanha e preta, escura, espessa (Foto 1).

Sou amante das artes, mas delas, profundamente, tenho muito pouco conhecimento (seja do ponto de vista técnico, estético ou mesmo sociocultural). Assim (que me desculpem os especialistas) esta minha descrição é puramente de um leigo que foi acompanhando a evolução do mural com os olhos de um não entendido em pinturas. Feito este parêntesis continuarei a descrever o que vi e o que me pareceu perceber.
A segunda fase foi o povoamento do já terminado suporte com uma amálgama de cores, imprecisas e indefinidas formando diversas manchas como que se difusas sombras de qualquer coisa muito indeterminada se tratassem.
Esta segunda fase consegue-se observar na Foto 2 onde se pode igualmente ver, no lado superior direito, a data 27.05.2000 que creio ter sido a do início dos trabalhos.

A terceira fase foi o preenchimento progressivo do mural, com pinceladas mais despreocupadas, mais largas e mais longas, de cores mais vivas em que predominava, quase exclusivamente, o amarelo puro, por vezes também mesclado com a cor laranja. Esta fase, para mim, me pareceu já mais objectiva, mais inteligível (mas ainda muito pouco compreensível), pois me parecia que o Mestre ia buscando agora, quiçá, as formas prévias e decididamente visionadas há muito na sua mente.
Toda esta longa terceira fase, de uma enorme abstracção pela junção de elementos tão disformemente distintos, ainda não me faziam perspectivar o resultado último que o Mestre seguramente buscava para o corporalizar. Foi esta a fase a que chamei de “fase amarela”.
Nas Fotos 3 e 4 poder-se-á observar o desenvolvimento desta terceira fase.


Terminada esta fase, Mestre Malangatana dedica-se a ressaltar “os milhares” de figuras que se adivinham das manchas e sombras então existentes.
Com um traço mais preciso e recortado das sombras que só ele, o Mestre, enxergava, começa-se a dar forma e sentido às figuras que irão povoar o mural. Na Foto 5 observaremos já o aparecimento das personagens mais reais e autênticas.

Das diversas reflexões efectuadas, em conjunto, para se estabelecer o tema que o mural deveria expressar, atingimos o fácil desfecho que deveria ser da Saúde e Medicina.
E assim desenvolveu, Mestre Malangatana, o mural que deve ser considerado único na arte moçambicana e africana.
Na verdade, ao olharmos o mural, toda a sua metade esquerda representa a medicina tradicional africana expressada potencialmente pela terra, pela flora, pelos animais, pelos espíritos e “xicuembos[4]”.
Como o nosso enorme mensageiro das letras, Mia Couto, também afirma: Estes rostos repetidos até a exaustão do espaço, estas figuras retorcidas por infinita amargura são imagens deste mundo criado por nós e, afinal, contra nós. Monstros que julgávamos há muito extintos dentro de nós são ressuscitados no pincel de Malangatana. Ressurge um temor que nos atemoriza porque é o nosso velho medo desadormecido. Ficamos assim à mercê destas visões, somos assaltados pela fragilidade da nossa representação visual do universo. (…) No seu traço está nua e tangível a geografia do tempo africano. No jogo das cores está, sedutor e cruel, o feitiço, (…) Estes bichos e homens, atirados para um espaço tornado exíguo pelo acumular de elementos gráficos, procuram em nós uma saída. A tensão criada na tela não permite que fiquem confinados a ela, obriga-nos a procurar uma ordem exterior ao quadro. Aqui reside afinal o génio apurado deste ‘ingénuo’ invocador do caos, sábio perturbador das nossas certezas.[5]
Pancho Guedes, eminente arquitecto português conhecido internacionalmente e igualmente devoto às artes, amigo de Malangatana, seu tutor e também um dos seus Mestres afirmou um dia: Como pintor, o artista moçambicano cuja arte se estendeu à cerâmica, escultura, tapeçaria ou gravura, “fazia uma pintura que era só dele, não precisando que ninguém lha ensinasse ou a interpretasse”.
Se, por outro lado, voltarmos a olhar o mural, toda a sua metade direita representa a medicina ortodoxa, convencional ou moderna. Aí poderemos observar várias simbologias como a máscara cirúrgica, a seringa, o penso protector da lesão anatómica, o livro da ciência debaixo do braço…
Na Foto 6 poderemos observar estas expressões dos dois conceitos diferentes de Saúde e Medicina mas, que em tudo interagem e se complementam.

que se interligam e complementam.
A “fase amarela” terminara e todos aguardávamos a obra que o Mestre Malangatana nos havia destinado. Mas não era certamente ainda esta. Havia uma realidade que nos confidenciava que alguma coisa faltava para atingir a grandeza e a maestria de que aguardávamos de um Mestre como Malangatana Valente Ngwenya (Ngwenya, que significa crocodilo na língua ronga).
Na Foto 7 poderemos observar o final da fase que considerei de “amarela”. O mural continuava em curso pois não havia ainda sido terminado.

Não me recordo porquê, mas a certa altura do final da “fase amarela” os andaimes foram desmontados. Nessa época estive ausente, em trabalho no exterior do País, por diversos períodos. Muitos interiorizaram que a obra havia atingido o seu final e Mestre Malangatana, como havia prometido, havia deixado o seu legado artístico à Faculdade de Medicina, valorizando esta Escola, aceitando e cooperando conjuntamente, connosco, com a ideia de que “Quem só sabe Medicina, nem Medicina Sabe”.
Na verdade, na Foto 8 Mestre Malangatana posa com o mural já sem andaimes, sorridente, vitorioso, confiante.
Mas, o mural não havia sido terminado ainda. Felizmente, para todos nós. De novo, montados os andaimes, uma outra fase de muito trabalho e desmesurada criação iria outorgar ao mural a riqueza e o fulgor que realmente se previam do Mestre Malangatana. Havia chegado o tempo da finalização da obra. O tempo de mostrar a real personalidade das figuras imaginadas, concebidas, esboçadas.

Espanto dos espantos! Uma enorme transformação mítica e plena de magia revela-nos uma outra obra, como se de outra na verdade se tratasse. A verdadeira, a autêntica obra.
A obra final! Agora completa e prenhe com a explosão das quentes cores da sua e nossa cálida africanidade, genuína, enfeitiçada, forte, singela, solidária (Foto 9).
Há, contudo, um enorme senão em toda esta história e que, hoje, ainda me pesa na consciência: é que o mural não está assinado. E não está assinado porque nunca fomos capazes de fechar uma data para o efeito. Na verdade, ambos (eu e o Mestre Malangatana) havíamos acordado que se deveria proceder à explícita apresentação do mural com uma grande cerimónia pública. Cerimónia com pleno envolvimento da academia universitária (privilegiando os estudantes do Curso de Medicina) e que envolveria também, naturalmente, todas as forças vivas da sociedade Maputense. Era uma oportunidade ímpar de, de entre outros valores, igualmente importantes, fazer passar o que já havíamos interiorizado: “Quem só sabe Medicina, nem Medicina Sabe”. E, essa data, conciliada, jamais apareceu. Eu, terminei a minha missão na Faculdade e tu, Mestre e amigo, resolveste partir ― quão cedo o fizeste ― para a longuíssima e desconhecida caminhada de todos os viventes.

Meu amigo e Mestre Malangatana! Aí, onde quer que estejas, poderás contemplar o alucinante brilho das tuas quentes e magníficas cores que continuam e continuarão sempre contando, através do teu universal pincel, bem ao teu modo africano, quanto importante também é a cultura e a arte na abordagem dessa outra arte da preservação e promoção da saúde, não importa de onde venha, desde que transportadora de verdade, de entrega, de missão, de respeito, de solidariedade, de dignidade.
Por esta dádiva colectiva, obrigado meu velho amigo e Mestre Malangatana!
Marracuene, 28 de Junho de 2020
[1] Em homenagem a médicos “suicidas” – Matalana recua para a década de 60, Crónica do jornalista Alexandre Chaúque no Semanário SAVANA de 28 de Abril de 2000.
[2] Restaurante Universitário “self service”, conhecido por Self.
[3] Frase que o Professor Abel Salazar da Universidade do Porto, Portugal, usava e hoje imortalizada numa das paredes de um átrio do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da mesma Universidade.
[4] Espírito dos antepassados, Deus, Bruxaria, Feitiço.
[5] Couto, Mia 1996, p. 12-13. Apud: SECCO, Cármem 2016, p. 293.
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